ISABEL GARDENAL
É sabido que o veneno de serpentes é uma mistura complexa de componentes orgânicos e inorgânicos. Duas pesquisas de doutorado, concebidas no Instituto de Biologia (IB) e no Instituto de Química (IQ) da Unicamp, chegaram a algumas revelações sobre proteínas presentes no veneno da jararaca e da cascavel, as quais poderão ter diversas aplicações. Estes estudos, ainda que preliminares, já fornecem um panorama para o entendimento de algumas funções, com a caracterização de proteínas que podem levar inclusive ao desenvolvimento de fármacos.
A pesquisa do IB, por exemplo, encontrou nas proteínas fosfolipases A2 uma possível aplicação de compostos polifenólicos de plantas sobre a ação tóxica do veneno da cascavel. O trabalho apontou que essas fosfolipases, submetidas ao tratamento com compostos naturais derivados de cumarinas, reduziram o seu efeito inflamatório, a agregação plaquetária, a miotoxidade, a citotoxicidade e a neurotoxicidade. Sua autora vislumbra o emprego de compostos polifenólicos sintéticos em ações biológicas para que os efeitos medicamentosos possam ser melhor explorados.
Por outro lado, a pesquisa do IQ chegou à caracterização da proteína BJ8 pela técnica da cristalografia. Esta proteína demonstrou uma capacidade incomum de conduzir à agregação plaquetária, ou seja, à coagulação sanguínea. No estudo, o veneno da cascavel mostrou um efeito neurotóxico e da jararaca hemorrágico, o que permite fazer um prognóstico: uma futura aplicação terapêutica nos problemas de distúrbios neurológicos e de coagulação. Além disso, pela primeira vez observou-se uma molécula de um lisofosfolipídeo presa à proteína, indicando um novo papel como carregador de moléculas.
Ambos os trabalhos se entrelaçam não somente por fazerem abordagem a partir do veneno de serpentes, atuando como pesquisa básica, mas também porque confirmam a necessidade cada vez maior de realizar estudos colaborativos, envolvendo diferentes institutos e diferentes instituições, sem falar no uso de técnicas destacadas como a cristalografia que impulsionam ainda outros estudos.Estudos abrem perspectiva
para a produção de fármacosUm passo que pode colaborar para o desenvolvimento futuro de novos fármacos que tenham ação neurológica e na coagulação sanguínea foi dado pelo químico Marcelo Leite dos Santos. Estudando o veneno de serpentes da fauna brasileira em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Química (IQ) e orientada pelo professor Ricardo Aparicio, o doutorando resolveu a estrutura de importantes proteínas por meio da Cristalografia por Difração de Raios X, uma das técnicas mais difundidas para a caracterização de macromoléculas que permite avaliar a forma da proteína e a organização espacial dos aminoácidos que a compõem. Santos conseguiu, por exemplo, caracterizar a BJVIII, uma proteína que tem potencial para levar à coagulação sanguínea.
Os dois principais resultados da pesquisa foram obtidos a partir da proteína extraída e purificada do veneno da serpente Bothrops jararacussu, popularmente conhecida como jararaca, e da serpente Crotalus durissus cascavella, a cascavel. Caracterizando a proteína BJVIII do veneno da Bothrops jararacussu, Santos deteve-se na sua incomum capacidade de agregação plaquetária (coagulação sanguínea), o que não era esperado para essa classe de proteínas em experimentos de bioquímica.
Entender a estrutura da proteína, expõe Aparicio, ajuda a avaliar as razões que podem explicar o seu funcionamento. O veneno, no caso, não é constituído somente por proteínas. Envolve uma complexa mistura de componentes. A serpente injeta este verdadeiro “coquetel” de constituintes orgânicos e inorgânicos na vítima, causando profundos danos aos tecidos, com iminência de necrose e mesmo de morte. Dentre os principais componentes do veneno estão as enzimas fosfolipases A2 que, em contato com os tecidos do organismo, provocam uma série de reações. Uma delas consiste em induzir coagulação sanguínea na vítima, fato que motivou esta investigação, pois esta atividade biológica não estava de todo esclarecida no caso da BJVIII.
O trabalho foi guiado com a proteína já separada das demais, após ter sido isolada do veneno. Esta purificação da proteína de interesse foi feita graças à colaboração do biólogo Fábio Henrique Ramos Fagundes, aluno de doutorado orientado pelo professor da Unesp Marcos Hikari Toyama, que mantém uma parceria com o Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
Toyama e Fagundes trabalharam tentando entender por que isso acontecia, lançando mão de alguns tipos de técnica. O grupo do IQ dedicou-se à parte da estrutura para chegar aos indícios de “como” isso ocorre. A parte de estudo do veneno das serpentes, diz Fagundes, foi bem fundamentada, sobretudo após observar-se que alguns efeitos poderiam ser usados com fins terapêuticos. Exemplo disso reflete o captopril, um hipotensivo usado comercialmente e que é sintetizado artificialmente com alterações. Antigamente, o captopril era extraído do veneno de serpentes para atuar como fármaco. “Hoje, estudamos as inúmeras proteínas do veneno e seus efeitos, tanto proteínas ligadas à neurotoxicidade quanto aquelas que causam hemorragia e mesmo as que acabam levando à coagulação sanguínea, como é o caso da BJVIII”, expressa Santos.
Efeitos adversosOs venenos de cascavéis são conhecidos como crotálicos e os de jararacas como botrópicos, e diferem significativamente por provocar reações muito distintas na vítima. Os sinais e sintomas de uma pessoa envenenada por uma cascavel são díspares de outra que foi envenenada pela jararaca. No caso do veneno da cascavel, o efeito principal é neurotóxico, sendo o sintoma mais notório a pálpebra caída. A vítima está exposta ainda ao risco de sofrer uma parada respiratória, visto que o veneno bloqueia o sinal que deveria ir para a parte muscular. Normalmente, a pessoa morre por asfixia, ao serem bloqueados os impulsos nervosos que seguem para os músculos da respiração.
Santos, por outro lado, explica que o veneno da Bothrops jararacussu possui um efeito hemorrágico. Assim sendo, a vítima acaba tendo uma necrose de tecido, destruição do músculo e hemorragia, que às vezes leva à morte. “A vítima pode ainda apresentar perda de membros”, informa Santos. No caso específico deste veneno, existe uma fração proteica que tem um efeito que causa a hemorragia e uma outra fração que causa a coagulação sanguínea. “São efeitos opostos provocados por duas proteínas muito parecidas em sua sequência de aminoácidos.”
Avaliando tais efeitos biológicos, Santos se interessou por desvendar o porquê de uma proteína ocasionar coagulação sanguínea e inferiu que ela poderia apontar para alguma terapêutica relacionada a problemas de coagulação sanguínea. Para ele, esta seria uma visão prática para ancorar melhor a compreensão do mecanismo de funcionamento destas proteínas.
No caso da fosfalipase A2 de cascavel, conforme Santos, foi avaliado o efeito do tratamento químico com um produto natural chamado naringina, um flavonoide amplamente encontrado nos citrus. Com este produto, alterava-se a estrutura dessa proteína e a sua função também, percebendo-se elevada atividade bactericida desta fosfolipase de cascavel. “Era capaz de destruir a membrana celular por quebrar fosfolipídeos de membranas”, constata.
Após o tratamento químico com a naringina, verificou-se que a atividade bactericida foi diminuída e quase inibida por total. Em outras palavras, a mesma proteína, depois de tratada, não mais destruía a membrana da bactéria. “Empregamos uma técnica complementar, chamada Espalhamento de Raios X a Baixos Ângulos (SAXS), para avaliar as modificações na proteína”, conta o químico.
Aparicio esclarece que entender tais processos pode, mesmo que não de imediato, colaborar para o desenvolvimento de novos fármacos. “Marcelo obteve resultados importantes que adicionam mais uma peça num intrincado quebra-cabeça. As estruturas obtidas permitiram formular novas hipóteses sobre o mecanismo pelo qual a fosfolipase de jararaca, BJVIII, exibia um inesperado efeito de agregação plaquetária.”
O propósito de estudar as duas proteínas, complementa Fagundes, emergiu do efeito de agregação plaquetária. Além disso, proteínas de serpente vêm sendo estudadas para bloqueio de sinais sobre os quais não se tem controle, em distúrbios neurológicos nos quais há passagem de um sinal muito amplificado. “Desta forma, os mecanismos de ação destas fosfolipases poderiam ser úteis na busca de algum mecanismo de bloqueio de transmissão nervosa indesejada nos sistemas biológicos.”
Carregadoras molecularesDe acordo com Santos, no caso da fosfolipase de jararaca, a BJVIII, verificou-se que existia uma molécula chamada ácido lisofosfatídico ancorada no sítio ativo, uma região importante da proteína. O curioso nesta descoberta foi que pela primeira vez notou-se uma molécula de um lisofosfolipídeo presa a uma proteína deste tipo. Isso sugere que o achado está ligado a um novo papel de ação dessa proteína, que atua como carregadora de moléculas que podem sinalizar para um efeito farmacológico.
Atribuiu-se, a partir desse estudo, o efeito de coagulação sanguínea e o efeito de agregação plaquetária não à proteína BJVIII, como se pensava antes, e sim à molécula que estava presa dentro da proteína para ser liberada somente no momento adequado, onde esta molécula iria atuar nas plaquetas induzindo a agregação plaquetária e iniciando a cascata da coagulação.
A função de uma proteína, por exemplo uma enzima, está diretamente relacionada ao modo como seus átomos se organizam em três dimensões. As proteínas são moléculas muito grandes – centenas ou milhares de átomos – formadas por pequenas unidades, chamadas aminoácidos, que se encaixam um após o outro numa sequência determinada por DNA, permanecendo unidos como se fosse um “fio”. Com os 20 aminoácidos comumente encontrados na natureza, os organismos vivos são capazes de gerar um número enorme de combinações.
Esse “fio” de aminoácidos se retorce de modo a gerar a estrutura tridimensional da proteína, na qual aminoácidos, inicialmente distantes na sequência, podem acabar ficando muito próximos quando vistos em três dimensões. Normalmente, dentre centenas de aminoácidos, apenas alguns poucos são responsáveis pela ação da proteína e, por isso, conhecer sua estrutura com precisão é essencial para entender seu funcionamento.
Quando os estudos de Santos foram iniciados, já existiam estudos farmacológicos utilizando várias técnicas que mostravam que esta determinada proteína que se classifica como a fosfolipase era capaz de atuar induzindo a agregação plaquetária. Acreditava-se que, em geral, a própria proteína teria potencial para fazer uma reação química e provocar mudanças que levariam a este efeito de agregação.
Em particular, Santos observou que não era bem assim. “O que a gente consegue observar, olhando a estrutura da molécula e da proteína, como um todo, é que há uma outra molécula pequenininha sempre ligada a esta proteína. Uma das novidades do trabalho está nessa nova hipótese de que a fosfolipase tem condições de atuar como um transportador de outras moléculas pequenas.” No caso da serpente, quando ela produz o veneno, também produz essa pequena molécula (muito pouco solúvel em água) que entra dentro da proteína. “A proteína do veneno transporta esta molécula que, uma vez liberada, é capaz de induzir a agregação plaquetária, relacionada à coagulação sanguínea, formação de coágulos na circulação e morte da vítima por embolia”, assinala Aparicio.
O complexo proteicoA Cristalografia por Difração de Raios X é hoje a principal técnica de escolha para determinar a estrutura das proteínas. Nela, as moléculas de proteínas são forçadas a se encaixarem de um modo muito bem ordenado – um cristal. Expondo os cristais aos raios X, consegue-se obter com precisão a posição dos átomos, revelando a estrutura proteica. Pode-se cristalizar a proteína sozinha ou junto com moléculas menores, que interagem com ela formando um “complexo proteico”. A Unicamp, através do Laboratório de Biologia Estrutural e Cristalografia (Labec) do IQ, implantado por Aparício e colaboradores em 2004, está entre as poucas instituições do país a oferecer infraestrutura e as capacidades necessárias para determinar estruturas de proteínas.
Além de sua importância em pesquisa básica, a cristalografia é essencial ao desenvolvimento de drogas. Elas geralmente são moléculas pequenas projetadas para se “encaixar” nas proteínas, interferindo em sua ação dentro da célula viva. Havendo um composto inicial, candidato à droga, e usando como guia estruturas de complexos proteicos, os átomos da molécula pequena podem ser modificados para aumentar sua atividade sobre a proteína de interesse.
A cristalografia pode ainda ser utilizada na determinação da estrutura das próprias moléculas pequenas sem a presença de proteínas, informação muito importante durante o estabelecimento de rotas para a síntese orgânica de compostos com atividade biológica.
Nessa direção, um importante adicional ao parque instrumental do IQ está em fase de aquisição com recursos do projeto temático da Fapesp “Biologia química: novos alvos moleculares naturais e sintéticos contra o câncer. Estudos estruturais, avaliação biológica e modo de ação”, coordenado pelo professor do IQ Ronaldo Aloise Pilli. O projeto deve desenvolver compostos com atividade contra o câncer. O novo equipamento, um difratômetro para monocristais de última geração, auxiliará na determinação da estrutura de pequenas moléculas e nos estudos de sua interação com proteínas. (Isabel Gardenal)
fonte:http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/abril2010/ju457_pag0607.php