quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Minúsculos tubos de carbono podem se tornar a base para poderosos músculos artificiais. A novidade vem sendo “cultivada” na Universidade do Texas,em um megaprojeto de pesquisa do qual participam quatro brasileiros

Por:Reinaldo José Lopes Os cientistas que estudam o mundo do muito pequeno já se acostumaram a esperar surpresas. Objetos estruturados na escala dos nanômetros (ou bilionésimos de metro) tendem a se comportar de maneira inusitada e interessante, inspirando todo tipo de aplicação tecnológica. O trabalho de uma grande equipe internacional de pesquisadores, da qual participa um físico teórico da Unesp em Bauru, está dando passos importantes para trazer uma dessas possíveis aplicações para mais perto da realidade: músculos artificiais muito resistentes e poderosos, cuja principal matéria-prima é uma variação delicadamente arquitetada dos átomos que formam o grafite de um lápis. Esses “bíceps sintéticos” são feitos com nanotubos de carbono, talvez os mais populares componentes dos dispositivos gerados pela nanotecnologia, como é conhecida a ciência que manipula a matéria na escala dos bilionésimos de metro. A estrutura desses tubos é relativamente fácil de entender. Toma-se um material feito inteiramente de átomos de carbono – de novo, o grafite é um bom exemplo – e corta-se o objeto de maneira a produzir uma folha finíssima, com um átomo de espessura. Vista de cima, tal folha pareceria uma colmeia nanométrica, formada pela conexão de inúmeros hexágonos, cujos vértices são os átomos de carbono. Agora, enrole mentalmente essa folha, formando um cilindro: eis o nanotubo. Não foi à toa que essa arquitetura molecular aparentemente delicada ganhou status de pau para toda obra na pesquisa em nanotecnologia. Além de conduzir eletricidade e calor com alta eficiência, os nanotubos de carbono também são um material de força quase miraculosa. Um teste clássico, feito no ano 2000, mostrou que a resistência deles seria equivalente à de uma corda de apenas 1 mm de diâmetro que aguentasse um peso de mais de seis toneladas sem arrebentar. Nada mais natural, portanto, que o material se tornasse o grande candidato para integrar músculos artificiais. Em essência, como define Mark Schulz, da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, merecem essa designação os materiais capazes de mudar de tamanho ou forma sob a ação de algum estímulo, de maneira a realizar algum trabalho – erguer um peso ou girar uma hélice, digamos. O problema, porém, é encontrar uma receita na qual os nanotubos desempenhem essa função de forma rápida, eficiente e reversível, como os músculos biológicos – e com vantagens de performance em relação a eles, claro. Uma das respostas mais promissoras está sendo esboçada em trabalhos liderados por Ray Baughman, do Instituto de Nanotecnologia Alan MacDiarmid, na Universidade do Texas. A chave parece estar em dois fatores: torcer vários “fios” de nanotubos, criando uma espécie de corda; e “rechear” esse cordame com materiais como a parafina, o que facilitaria muito a contração e o relaxamento típicos dos músculos naturais. Baughman tem colaboradores na Austrália, na China e na Coreia do Sul, entre outros países, mas algumas das contribuições mais importantes para os músculos artificiais estão vindo do Brasil. A descrição mais recente dos artefatos, em artigo publicado em novembro na revista Science, tem como principais autores os brasileiros Márcio Lima e Mônica Jung de Andrade, ao lado da doutoranda chinesa Na Li – todos trabalham no laboratório de Baughman em Dallas. Também são coautores do artigo Alexandre Fontes da Fonseca, do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Unesp em Bauru, e Douglas Galvão e Leonardo Machado, do Departamento de Física Aplicada da Unicamp. “Márcio e Mônica fizeram a parte do leão do trabalho de caracterização dos músculos artificiais na nossa última publicação. Alexandre é um teórico brilhante, que nos ajudou a entender os resultados”, afirma Baughman. O físico da Unesp, que também já passou uma temporada no laboratório texano, explica que a sua principal contribuição foi tentar explicar o comportamento dos fios supertorcidos formados pelos nanotubos, bem como a interação dessas estruturas com a parafina, que envolvem fenômenos bastante complexos. Florestas de nanotubos Ele conta que o primeiro passo para chegar aos músculos artificiais é saber “cultivar” as chamadas florestas de nanotubos, que servem de matéria-prima para os fios usados pela equipe. É um processo complicado, que exige uma “mão” boa do pesquisador para funcionar – quase uma receita de bolo, compara Fonseca. Baughman concorda que o processo tem mesmo algo de receita culinária, “na medida em que envolve experimentos de tentativa e erro, mais do que uma compreensão teórica”. Pequenas mudanças nas condições experimentais podem acabar gerando florestas totalmente inúteis para o objetivo de produzir fios trançados. A saída, diz ele, é ajustar o processo delicadamente ao aparato que está sendo usado para produzir os nanotubos. “É uma receita guardada a sete chaves”, brinca Mônica. Em linhas gerais, no entanto, dá para dizer como o processo ocorre. Numa câmara a vácuo, os pesquisadores induzem o crescimento de uma película metálica em cima de um substrato, em geral óxido de silício. Depois disso, a câmara é inundada com um hidrocarboneto (composto de carbono e hidrogênio), como o acetileno, na forma de gás. “Os átomos de carbono vão se chocando com o substrato, o que leva à formação dos nanotubos”, diz Fonseca. Os tubos que se formam lembram bonecas russas: possuem seis paredes concêntricas, cada uma com a espessura clássica de um átomo de carbono, e diâmetro externo de 9 nanômetros. Os tubos de paredes múltiplas crescem verticalmente a partir do substrato, como se fossem árvores – daí o apelido de “florestas de nanotubos”. Para que a criação dos músculos artificiais dê certo, é preciso que os cientistas consigam puxar um maço desses “troncos” do substrato e possam trançá-los para formar fios. No ano passado, Fonseca foi coautor de um estudo na revista científica ACS Nano no qual ele e seus colegas traçaram um modelo que explica em que situações isso é possível. O que ocorre é que, durante o processo de crescimento da floresta, é preciso que uma rede mais tênue de nanotubos se forme entre cada um dos “troncos”, como os cipós entre as árvores de uma floresta. Se esse cipoal se formar com regularidade e densidade adequadas, os fios podem ser trançados com eficácia; do contrário, nada feito. À primeira vista, o raciocínio por trás da ideia de usar os fios torcidos como músculos parece relativamente simples. Afinal, é a contração e o relaxamento das fibras musculares que faz um bíceps humano funcionar. Nas catapultas primitivas, eram os tendões de animais, fortemente enrolados, que davam o impulso às pedras quando se desenrolavam. No caso dos nanotubos, porém, é preciso levar em conta uma propriedade contraintuitiva do material, explica Fonseca. “Muitos materiais, quando aquecidos, expandem-se. Já o comportamento térmico dos nanotubos é tal que, quando você os aquece, o volume deles aumenta, mas no comprimento eles se contraem”, diz ele. O pulo do gato, portanto, seria aplicar calor às cordas de nanotubos, que acabariam se contraindo, tal como acontece com os bíceps de alguém que puxa um peso. Em outro estudo publicado na revista Science, no ano passado, a equipe já tinha se dado conta de que essas mudanças no volume e no comprimento dos nanotubos podiam ser a chave para o funcionamento deles como músculos. A chinesa Na Li, coautora do estudo de novembro, foi a primeira a demonstrar que o processo podia ser potencializado por um material “hóspede” dentro dos nanotubos, enquanto os brasileiros Márcio Lima e Mônica Andrade verificaram que a parafina estava talhada para esse serviço. “A parafina é um material com enorme expansão térmica [ou seja, sofre grandes mudanças de volume quando a temperatura muda]”, explica Mônica. “E, por ser um hidrocarboneto, possui boa afinidade química com os nanotubos de carbono, o que facilita uma boa aderência.” A pesquisadora cita outras vantagens importantes da cera: custa pouco e é versátil do ponto de vista da temperatura com a qual os pesquisadores vão trabalhar, já que é possível variar a quantidade adequada de carbono usando parafinas formadas por cadeias de átomos de carbono mais modestas ou mais avantajadas. Um dos jeitos de incorporar a parafina aos nanotubos é depositar a cera em cima dos que foram arrancados da floresta antes de eles serem trançados para formar os fios. Com essa configuração, portanto, a ideia é que um empurrãozinho dado pelo calor – gerado por uma corrente elétrica ou por uma fonte de luz, por exemplo – faça a parafina começar a derreter, alterando o volume do fio trançado. Isso provocaria um rearranjo da torção dos nanotubos, produzindo um trabalho capaz de puxar alguma coisa, digamos. Mas como isso poderia acontecer sem que a parafina simplesmente “vazasse” para fora da “corda”, que é o que aconteceria no caso de uma trança macroscópica? A questão é que, na escala nanométrica, as reentrâncias dos nanotubos são tão numerosas, gerando forças de interação tão poderosas entre os materiais, que a parafina simplesmente não consegue escapar. O resultado dessas interações minúsculas é surpreendentemente potente. No estudo da Science, a equipe mostrou que os músculos parafinados são capazes de erguer 100 mil vezes o seu próprio peso, gerando 85 vezes mais força mecânica do que as contrações de um músculo natural da mesma dimensão. As contrações são extremamente rápidas, da ordem de 25 milésimos de segundo. E, mais importante ainda, mostraram-se reversíveis por milhares de vezes – bastava aquecer ou resfriar o músculo que a parafina, mais derretida ou mais sólida, fazia o resto. Uso em próteses As aplicações desse tipo de sistema são potencialmente um bocado numerosas. Uma das possibilidades seria usar os músculos em tecidos inteligentes, que abririam e fechariam sua malha de acordo com a temperatura. Poderiam regular automaticamente a abertura de janelas ou servir como válvulas de segurança, reagindo diante da presença de alguma substância química tóxica. E a versão sem parafina poderia realizar tarefas em condições extremas de temperatura – 2.500 oC, por exemplo. E dá para pensar em possibilidades ainda mais futuristas, como a integração ao organismo humano. “Por enquanto, com a atual tecnologia, esses músculos artificiais já poderiam ser usados em próteses externas. Seria o caso de pessoas com pernas amputadas”, diz Mônica. “Os nanotubos de carbono em si possuem boa compatibilidade [biológica]. Mas, para usá-los em próteses dentro do corpo humano, precisamos buscar materiais que não necessitem de variações de calor para atuar, já que nosso corpo é muito sensível a mudanças desse tipo”, acrescenta a pesquisadora. “Acho que o sucesso desse trabalho também se deve, em grande parte, à personalidade peculiar do Ray, que consegue coordenar tanta gente em tantos lugares diferentes”, diz Fonseca. O pesquisador americano faz questão de devolver o elogio. “Tenho a sorte de trabalhar com pesquisadores extremamente talentosos e dedicados em quatro continentes. As contribuições seminais de colaboradores do Brasil são evidência clara do impacto que a ciência brasileira tem tido”, afirma ele, lembrando que sua colaboração com Douglas Galvão “em publicações de alto impacto”, como gosta de ressaltar, já dura mais de duas décadas. fonte: Revista Unesp Ciência - Dezembro/2012 - Ano 4 - nº37

Nenhum comentário:

Postar um comentário